quarta-feira, 23 de abril de 2014

"Eu queria que você não fugisse de mim, mas se fosse eu, eu fugia".

Senta aqui. Encosta essa orelha fria no meu rosto. Mais exposto que o sol dessa tarde não dá. Olha nosso reflexo, tá só no meu espelho. Oh, meu cabelo! Gosta da minha rima, se prende feito imã, logo a mim que sou água. Te ofereço nada, só beijo, pele, cheiro e cangote. Não é sorte ou azar, só não posso dar o que não tenho. Desenho teu traço, te abraço e de novo saio. Deito, levanto, distraio, mas não posso contar enredo. Não tem prosseguimento. Será cedo? Será medo? Deixa estar, senta aqui.

sexta-feira, 21 de março de 2014

Produto

Olhando pela janela do carro ele sabia que iria me deixar. Eu fiquei ali falando, implorando, argumentando, como se estivesse tentando vender algum produto caro para alguém, apontando suas qualidades, explicando as vantagens de adquirir um modelo como aquele, tão sólido, tão bem-feito, tão sensível e fiel às vontades do usuário. Mas ele não estava interessado, e remoía o cansaço e a culpa, mastigava-os em uma careta, como um chiclete que já havia perdido o gosto fazia tempo e ele mal via a hora de poder cuspir na primeira sarjeta que aparecesse pela frente.

Olhando pela janela do carro, para a rua fria e as gotas de chuva, parecia que ele queria fugir dali, pular pela janela, sair correndo, me deixar dentro daquele carro até que alguém acionasse o seguro contra roubo, enquanto ele corria, corria como um ladrão. Me deixa ir, ele dizia. Me deixa ir embora daqui. Salta desse carro, salta da minha vida, desaparece dentro da sua casa, faz com que eu nunca tenha existido na sua vida.

Olhando pela janela da sala, eu vi ele engatando a primeira e derrapando na rua molhada, como um foragido. Não acenou adeus, não pediu desculpas, apenas acendeu um cigarro dentro do carro e saiu voando.

Olhando pela vitrine, todos podem me ver, de novo. Estou à venda, por um preço muito baixo - um modelo usado, velho, desgastado. Quem sabe sirva para alguma coisa.

terça-feira, 18 de março de 2014

Pessoal particular

"Digerimos mais publicidade em um ano, do que nossos avós a vida inteira".
"Comprar tilhamos" ao máximo.
Cortamos o cabelo, reinventamos nosso gosto musical, criamos hábitos e hobbies fabricados pela massa.
Nunca foi tão fácil encontrar os conhecidos, vamos aos mesmos lugares.
Reclamamos da rotina, mas nos alegramos se acabar em final de semana.
Saímos de casa, procuramos algo mais. Voltamos pra casa sem nada, mas fingimos que achamos.
Se contestar muito é in, fazemos. Se citar autores faz parecer inteligente, citamos. Se listras são in, vestimos. Se a natureza é in, verdejamos.
Não contar pra ninguém, out.
Esses dias ouvi uma coisa "Cuidado pra não falar tudo o que pensa e ficar sem conteúdo".
Acordei de um transe e pensei: é questão de uns cinco anos pra cá, respira. Dá tempo.
Hora de desapegar do holofote.
Quanto vale guardar um restaurante preferido em sigilo, apenas pra levar quem mereça em certo dia?
Estão pagando pra espalhar meu sorriso preferido que você fotografou naquele flash a dois?
Não to pechinchando o trecho grifado das folhas gastas de Ferreira Gullar, que me chocam sempre.
Aquela melodia que eu toco, que me toca e que não chegou às paradas, não troco mais.
Ainda to chorando sozinha com a cena daquele filme sem recursos e sem demanda.
Do you like? Não quero.
To zelando aqui desse melhor particular. Não vale tanto se estiver na palma da mão. Ouro tá enterrado.
E se continuar comigo e eu gostar de tudo sozinha, o retorno sempre será de 100%.

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Áspero

"Esse corpo tá doente". É o corpo, Elena?
Um nó que não desfaz, e lá, na garganta bem atrás de onde se alcança.
Ai, e cansa! Pesa os ombros, força o ar. Lembra um par de algemas, mas onde estão? A visão resta prejudicada, cega ou dissimulada me impedindo a claridade. É verdade abstrata, mentira inata, ouro de lata, realidade chata.
São muitos embaraços no cabelo e o espelho não me revela. Quem vela pelos corpos que ainda não morreram? Desceram a lama, pés exaustos, descalços e desperdiçados. Destinados a nada, piada de vida. Viagem de ida, sem remorso, um peso, uma medida.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Eu quero quebrar essas xícaras




Eu quero voltar no tempo e entrar na sua casa. Pegar minhas roupas, meus livros, o bilhete que eu deixei debaixo das suas coisas, os DVDs aos quais assistimos juntos, os beijos que eu te dei, as piadas que eu contei e que te fizeram rir, e o teu próprio riso que, de certa forma, eram meus.

Eu quero matar seus peixes e insultar seus amigos. Destruir seus móveis e seu ego. Rasgar seus lençóis e nossos retratos. Queimar seus traços e suas bordas. Assombrar seu quarto e seus sonhos. Esvaziar suas garrafas e suas lágrimas. Eu quero desmontar seus jogos e argumentos.

Eu quero escrever um livro que fale mal de você, em que você morre no final e ninguém chora, que ninguém compra, que não faz sucesso. Eu quero gritar na sua secretária eletrônica. Eu quero desmatar teu jardim e desorganizar a sua mesa do trabalho.

Tudo que foi delicado e nosso, eu quero despedaçado, morto, sepultado, amaldiçoado.

O nosso fim foi o fim do meu sono, assim como foi o fim da minha paciência. Foi o epílogo de uma história pesada. Foi o limite das minhas forças.

O nosso fim foi o fim de tudo.
Menos do meu amor.

Eu quero entrar no seu quarto e quebrar o meu amor.